Jesus é verdadeiro Deus e verdadeiro homem: o que os luteranos creem e por que não somos monofisitas


por Prof. Denício M. Godoy

Alguns irmãos reformados, especialmente entre os seguidores da teologia de Ulrico Zuínglio (zwinglianos), costumam acusar os luteranos de ensinarem uma antiga heresia chamada monofisismo. Essa palavra vem do grego moné (uma só) e physis (natureza). O monofisismo dizia que Jesus tinha apenas uma natureza: a divina. Os monofisitas ensinavam que a natureza humana de Jesus foi absorvida ou confundida com a natureza divina, como se tivesse desaparecido ou perdido sua identidade. Mas será que os luteranos ensinam isso? A resposta é: de forma alguma!

O que o luteranismo ensina

Os luteranos subscrevem o que foi confessado no Concílio de Calcedônia (451 d.C.), que declarou que Jesus Cristo é uma só pessoa com duas naturezas, a divina e a humana, sem confusão, sem mudança, sem divisão e sem separação (ἀσυγχύτως, ἀτρέπτως, ἀδιαιρέτως, ἀχωρίστως). Isso significa que as duas naturezas de Cristo permanecem distintas, mas estão unidas em uma única pessoa. Essa união é chamada de união hipostática, do grego hypostasis, que quer dizer “pessoa” ou “subsistência”.

A Confissão de Augsburgo (1530), no artigo III, diz:

“Também se ensina que o Verbo, isto é, o Filho de Deus, assumiu a natureza humana no ventre da bem-aventurada Virgem Maria, de modo que há duas naturezas, a divina e a humana, inseparavelmente unidas em uma só pessoa, um só Cristo, que é verdadeiro Deus e verdadeiro homem.”

Esse mesmo ensino é reafirmado na Fórmula de Concórdia, parte das Confissões Luteranas (Livro de Concórdia), especialmente nos artigos VIII e IX.

A acusação: “os luteranos são monofisitas”

A acusação normalmente vem quando dizemos que Cristo está presente com seu corpo e sangue na Ceia do Senhor. Os reformados, que negam essa presença real, dizem que, se o corpo humano de Cristo está presente em todos os lugares (como na Ceia), então ele deixou de ser um corpo verdadeiro e humano, tornando-se algo “divino demais”, perdendo suas propriedades humanas — e isso, para eles, seria monofisismo.

Mas isso é um mal-entendido do ensino luterano. Nós não dizemos que a natureza humana de Cristo “virou” divina, nem que ela se perdeu. Dizemos que a natureza humana continua plenamente humana, mas que recebeu certos dons por causa da união com a natureza divina. Isso é o que chamamos de comunicação dos atributos (communicatio idiomatum, em latim).

O que é a “comunicação dos atributos”?

Esse é um ponto chave. Como luteranos, cremos que por causa da união hipostática, a natureza divina comunica seus atributos à natureza humana de Cristo, sem que essa perca sua humanidade.

Por exemplo:

  • Jesus pode dizer: “Antes que Abraão existisse, eu sou” (João 8:58). Isso é uma afirmação divina.

  • E também pode dizer: “Tenho sede” (João 19:28). Isso é humano.

Ambas são ditas pela mesma pessoa: Jesus Cristo. A pessoa é uma só, mas com duas naturezas.

Nós cremos que a pessoa de Cristo, por ser divina e humana, pode agir com os atributos das duas naturezas. Assim, o corpo de Cristo pode estar presente na Ceia, não porque a carne virou espírito, mas porque a carne de Cristo está unida com a divindade, que é onipresente.

O teólogo Martinho Chemnitz, um dos principais sistematizadores da teologia luterana após Lutero, escreveu extensivamente sobre isso em sua obra Exame do Concílio de Trento. Ele mostra que o corpo glorificado de Cristo pode estar onde quiser, não por ter perdido sua humanidade, mas por estar unido à natureza divina. Isso também é confirmado pelo Lutero, ao dizer que “o Verbo se fez carne, não para que a carne virasse verbo, mas para que o Verbo estivesse na carne”.

Longe do monofisismo

Portanto, a fé luterana:

  • Confessa Calcedônia, rejeitando o monofisismo.

  • Confessa a permanência das duas naturezas, distinta e verdadeiramente unidas.

  • Confessa que a natureza humana permanece humana, mas agora participa, em virtude da união hipostática, de certos dons da divindade.

Se há alguma heresia parecida rondando esse tema, ela não está no luteranismo. O monofisismo diz que a natureza humana se perde. Nós dizemos que ela permanece, e é justamente isso que torna Cristo nosso Salvador: um de nós, verdadeiro homem, sem deixar de ser verdadeiro Deus.

E sobre os nestorianos?

Alguns dos que nos acusam de monofisismo caem, sem perceber, no erro contrário: o nestorianismo, que separava tanto as naturezas de Cristo que acabava falando como se fossem duas pessoas em vez de uma. Quando dizem que o corpo de Cristo está no céu e não pode estar na Ceia, separam as naturezas — como se o Filho de Deus estivesse em todo lugar, mas Jesus homem estivesse confinado num lugar só. Isso fere o ensino da unidade da pessoa de Cristo.

Conclusão:
Jesus é uma só pessoa, com duas naturezas, verdadeiramente unidas. O que ele faz, ele faz como Deus e homem ao mesmo tempo. E isso é exatamente o que a Igreja confessou em Calcedônia, nas Escrituras e nas Confissões Luteranas. Não somos monofisitas. Somos simplesmente cristãos que creem que Deus se fez carne — e continua sendo Deus e homem para sempre, por nós.

“Nele habita corporalmente toda a plenitude da divindade” (Colossenses 2:9).
“O Verbo se fez carne e habitou entre nós” (João 1:14).

 

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Prof. Denício M. Godoy

Bacharel em Teologia (ULBRA, 2019) | Pós-graduado em Docência em Filosofia e Teologia (Faculdade Prominas, 2022). Professor de Teologia no Instituto Martinho Lutero (Portugal) e colaborador nas Missões Luteranismo Brasil 

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